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Estima-se que a convivência entre animais e humanos tenha começado por volta de 12.000 anos atrás, no período neolítico, assim que o homem aprendeu a cultivar, de lá para cá muita coisa mudou. No Egito antigo, por exemplo, os gatos eram adorados, pois acreditava-se na existência dos felinos como criaturas mágicas. Os peludos eram enfeitados com roupas e adornos preciosos e tratados com a mais fina pompa. A história conta inclusive que existia a cultura de raspar as sobrancelhas em respeito ao luto pela morte de um gato.

No Brasil, gatos e cachorros são os tipos de animais de estimação mais comuns, mas no interior ou em grandes quintais, é normal encontrar uma outra espécie de pet: as galinhas. Tudo bem, não é tão comum assim ter uma galinha dentro de casa, mas será que elas não poderiam ser dóceis assim como os cães e gatos? A resposta é sim!

Desde que entendida por gente, minha avó é uma ótima criadora de animais em seu quintal. Patos, jabutis, galinhas e um cachorro atrevido e fujão que foi adotado na época da 1ª edição do Big Brother Brasil e foi chamado de ‘Bambam’, o xodó de meu falecido avô. Acostumada a trazer pintinhos da feira, entre todos os tipos de aves, para minha avó ainda faltava uma, a galinha carioca. Não, as galinhas cariocas não são as que nascem no Rio de Janeiro, mas as que nascem de pescoço pelado.

A filha única foi trazida ainda pequena, amarelinha e fofa, como um pintinho desses de desenho animado. “Mas vó, por que ela não tem pena no pescoço?”. “Minha filha, eu não sei dizer não, é coisa desse tipo de galinha, algumas têm, outras não”. Como uma criança fascinada pelo diferente, fiquei encantada pela pequena desprovida de agasalho e quis logo ficar, mas mamãe cortou minhas asinhas de pronto. Nenhum bicho entrava mais em casa, nem os voadores.

Em acordo com vovó, ela disse que me daria o pintinho, se minha mãe autorizasse. Como cartada final, afirmei que eu cuidaria do animal no quintal de vovó, então não seria um problema para ninguém e o frango só sairia ganhando. Ela aceitou, mas em pouco tempo ela se arrependeria, já que a saga da galinha carioca se tornaria um caso para lá de inusitado.

O que eu não sabia é que as galinhas poderiam ser muito adoráveis. Meu apego ao franguinho, ainda sem nome, mudou um pouco o destino do animal, antes com passagem só de ida para o fundo da panela. Pensei em vários nomes, e como decidi que seria uma menina, escolhi o nome da dona da mercearia onde comprávamos o milho das galinhas, mas como a mulher era muito amiga de minha avó, ela combinou que eu não poderia falar perto dela que a galinha fora batizada com seu nome. A partir daquele dia, a jovem galinha se chamava Luiza.

Melhores amigas, todos os dias eu batia meu ponto ainda cedo no quintal para vê-la, separei um lugar especial longe das demais, afinal, era minha protegida. Ninguém acreditava que eu carregava a danada no colo e dava até banho no tanque de roupas, e ela amava! A hora do meu almoço era reservada para que eu a fizesse dormir. Carinhos na cabeça e entre os olhos eram os favoritos de Luiza, que me retribuía oferecendo muito calor em seu pescoço desnudo.

Uma vez ela chegou a fazer cocô em mim durante o cochilo, claro que ocultei essa informação de minha avó, que já me alertara dos perigos de um intestino de galinha. Mas tudo valia a pena para vê-la fechando os olhinhos lentamente para mim. Ah, como eu gostava… “Tchau, Luiza! Até amanhã!”.

- “Oi, dona Socorro, como é que tá? Vim ver a minha galinha!”.

- “Galinha? Que galinha, menina?”

- “A minha, ué, a Luiza, do pescoço pelado. Vovó disse que mandou ela aqui para a sua casa, aí eu vim visitar”.

- “Hummmmm, eu acho que a Maroca se enganou, não veio galinha nenhuma para cá não”.

- “A senhora tem certeza?”.

- “Absoluta!”.

Certo dia, como de costume, cheguei no quintal e não encontrei Luiza em lugar nenhum, corri até minha avó e perguntei pela galinha. “Então, minha filha, o quintal tava muito cheio, aí eu mandei ela lá para o galinheiro da dona Socorro”. Socorro era a vizinha da frente e amiga da família, uma senhora muito bondosa e franzina, de sorriso simples e abraço acolhedor. Como sempre gostei muito da senhora, nem me importei com a mudança repentina.

Sem avisar, cruzei a rua em direção à casa de dona Socorro. Após algumas palmas e gritos, finalmente ela veio, com um guardanapo nos ombros e uma cebola nas mãos, provavelmente preparava a refeição do dia.

Atravessei de volta pelas tampas, furiosa com a mentira, e mais ainda, sem saber o paradeiro de Luiza, que já devia estar faminta, com o horário de sua refeição quase batendo. Na metade do caminho esbarrei com minha prima que já se adiantou. “Olha, Laurinha, vou te contar a verdade… mas não vai dizer que fui eu. Mataram a tua galinha!”. Comecei a correr até minha avó, só acreditaria ouvindo da boca dela, já que ela jurara que não a mataria de jeito nenhum.

- “Minha filha… desculpa a vovó, eu matei sim, mas foi teu padrinho que mandou. Ele queria comer uma galinha de quintal, de caldeirada, e a única que tinha era a tua”.

Sem ouvir mais nada, corri até a loja de meu padrinho, bem ao lado da casa da vovó, por aqui temos o costume de morar todos bem próximos. Com o espaço cheio de clientes, entrei pela porta dos funcionários, aos gritos. “CADÊ O TITIO??? ASSASSINO!!! O SENHOR É UM ASSASSINO”. Todos me olhavam assustados sem saber o que estava acontecendo. “Laurinha, pelo amor de Deus, o que tá acontecendo?”. Imaginem que não deve ser muito bom para a clientela ver uma criança entrando no lugar chamando o dono do estabelecimento de assassino…

- “O SENHOR É UM ASSASSINO, UM ASSASSINO!! MANDOU MATAR MINHA GALINHA!!! MINHA GALINHA NÃO ERA DE COMER!!”.

Algumas risadas e suspiros de alívio tomaram conta do lugar, antes uma galinha do que uma pessoa. Não para mim. Minha madrinha ria sem graça e explicava que ‘era apenas uma galinha’. Em minha memória esse momento foi apagado totalmente, o que sei é que gritei muito com todos que estavam rindo e saí correndo. Meu primo, desdenhando, disse que ela estava uma delícia, e inclusive foi meu almoço também, no dia em que fui, por acaso, passar o domingo com eles.

A dor foi ainda maior quando soube que também fiz parte da ceia que jantou a pequenina, passei meses sem falar com meu tio e as visitas à minha avó ficaram mais raras. Não conseguia entender como haviam matado Luiza, uma galinha tão dócil, carinhosa e cheia de manias tão suas. Assim como o cachorro da família, ela também tinha dor, afeto e tudo o que nós seres humanos achamos que são exclusivos de nossa espécie.

Hoje me dou conta que matar animais, e se alimentar deles, é tão comum quanto respirar, e por isso me tornei vegetariana. Não consigo mais me alimentar daqueles que facilmente poderiam dividir a cama comigo e se alegrariam com um afago na cabeça. Ouso dizer que a convivência com os animais me tornou mais humana e mais sensível às coisas ao meu redor, principalmente à natureza.

 

Cada vez que tiro algo dela, penso em como ela vai se regenerar e se vai se regenerar. A galinha carioca foi meu primeiro contato com o vegetarianismo, mesmo que ainda muito criança para entender. Lá atrás ela foi meu pontapé inicial para o que eu me tornaria hoje, mesmo que pouco, é minha forma de contribuir com a natureza. Colher, mas sempre lembrar de devolver.

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