O sofrimento encarado pelos animais é capaz de destroçar mesmo o mais forte dos corações. Quem compra um animal de raça geralmente costuma fazer isso outras vezes ao longo da vida, mas não aqui, essa história é diferente. A proteção animal normalmente é composta por pessoas que sempre gostaram de bichos, uns poucos que sempre desejaram seguir a carreira veterinária e outros que caíram de paraquedas, mas gostam de poder ajudar.
Aqui, o ponto fora da curva é um coração que antes não via os animais, mas depois de conhecer o amor, decidiu que sua vida, daquele dia em diante, seria totalmente dedicada a eles.
Quando questiono sobre como seu trabalho na causa começou, Jéssica Sodré, 30 anos, fica sem graça ao dizer que comprou o primeiro animal de estimação que teve, um pinscher sorridente e histérico chamado Toffoli - batizado em homenagem ao Ministro do Supremo Tribunal Federal. “Eu comprei o Toffoli [risadas]”. Após alguns segundos de silêncio, Jéssica continuou. “Não… é sério! Eu comprei o Toffoli”. Logo após a aquisição de Toti, apelido pelo qual é mais conhecido, Jéssica e a companheira adotaram Olaf, um cãozinho dócil e cheio de energia.
“Adotamos o Olaf pelo Facebook porque a moça ia jogá-lo fora, saímos para buscar o cachorro de madrugada, em uma região de periferia da cidade. Depois a Glenda pegou dois gatos, Cespe e Ruan, em um saco de lixo lá no Centro e trouxe para casa, mas eu não queria ter gato, porque já tínhamos os dois cachorros e eles davam muito prejuízo”.
A protetora chegou a ter um gato na infância, mas todas as memórias de sua relação com o bichano foram apagadas, por algum motivo que ela julga ter sido grave, já que não consegue se lembrar de nada. “Ele era amarelo”, soltou rapidamente. Sem poder ter cachorro em casa, na adolescência, ela se recorda que colocava alguns animais no depósito para alimentá-los, e em seguida soltava, para evitar a bronca da família.
Há quem diga temer a cara amarrada de Jéssica. Eu costumo dizer que assim se escondem os maiores corações, e com ela não é diferente. Incapaz de negar ajuda a quem precisa, a fera odeia ver gente com fome e não consegue fechar os olhos para nenhum animal, principalmente os casos graves que outras pessoas costumam desacreditar. Ela nunca se dá por vencida até tentar todas as alternativas possíveis, mesmo que isso custe algumas noites de sono.
Na pele ela carrega tatuado o rosto de um dos animais que mais a cativou em vida, uma gata de nome Belinha. Sem mobilidade nas patas traseiras, a felina não conseguia andar e nem sustentar o próprio peso nas duas patas, por isso fazia sessões de fisioterapia e tudo o mais que fosse necessário para que ela tivesse qualidade de vida. A partida da gata ainda é um assunto difícil, mesmo que Sodré se esforce para disfarçar.
Hoje, além dos resgates independentes, a protetora também é voluntária da ONG Gateiros Tucujús. Guerreiro, Dipirona, Bolota, esses são apenas alguns dos casos mais sérios que estão atualmente sob a tutela da Organização, e cuidados por Jéssica. Bolota, um gato macho tigrado, foi vítima de zoofilia e até hoje convive com os traumas, físicos e emocionais, deixados pela violência.
A psicologia define a zoofilia como uma patologia de quem pratica atividades sexuais com animais, mas também pode ser chamado por outro nome: estupro. Ao todo, a ONG da qual Jéssica faz parte, já acolheu dois animais que sofreram esse tipo de violência - com o nome ‘Gabriel’, o gatinho também tigrado, assim como Bolota, não resistiu e faleceu em decorrência do choque pelo trauma e pelos altos níveis de infecção.
Na época, o episódio causou muita comoção e estampou manchetes de sites de notícias locais, ainda assim, nada mudou em relação às políticas públicas voltadas para os animais. “No início eu só ajudava as ONGs financeiramente, porque era o que dava para fazer, hoje consigo fazer um pouco mais”.
Guerreiro: o Deus do grito
Com danos neurológicos irreversíveis causados por um chute na boca, Guerreiro entrou para as estatísticas de maus-tratos, mas sobreviveu, o que já é muito mais do que tantos outros, que não tiveram a mesma sorte. O gato de fraldas passa a maior parte do tempo deitado, pois possui dificuldades motoras e não mantém o equilíbrio por muito tempo, mas vive bem melhor do que na época em que foi resgatado. “A força da pancada abriu o palato e acabou quebrando o maxilar também. Ele ficou muito debilitado e com problemas neurológicos graves, emagreceu muito, porque não comia e nem bebia água”.
Sempre que acorda, Guerreiro grita de forma estridente, como se estivesse no cio. A razão? Ninguém sabe dizer. Mas a suspeita é de que também seja uma consequência neurológica. Em algumas noites é difícil pregar os olhos com o grito do gato, que pode durar minutos ou horas, dependendo do humor do dia. Em outras, o sono vem mais fácil, aos poucos os ouvidos se acostumam e não se incomodam tanto assim com o volume da algazarra. Mas de certo, essa é uma rotina que nem sempre é fácil de se acostumar.
Mistério do planeta
General linha dura, a mulher de 30 anos não é lá de grandes afetos com pessoas, mas isso não se estende aos animais, eles constam em sua mais alta confiança. Mesmo sendo a principal cuidadora deles, alguns não são seus maiores fãs, diferente de Jupita, que leva como missão demonstrar, todos os dias, a gratidão por ter sido salva quando bebê.
Jupita foi resgatada com pouco mais de duas semanas, dentro de uma vala em frente a uma padaria, na linha tênue entre vida e morte. Achada na rua Júpiter, da qual herdou o primeiro nome, e tigrada como Ruan, o gato primogênito da casa, Jupita Ruana era mais uma sobrevivente. Digna do maior planeta do sistema solar, a gatinha não se importa com os carinhos quase agressivos de Jéssica, na verdade até gosta, quanto mais aperto, para ela, melhor.
Sem economia de carinho, conhecendo Jéssica, digo que ela terá dificuldades em doar a pequena amorosa, em resposta, recebo um sonoro: “Consigo sim, se entra mais um bicho por aquela porta, os gatos me colocam para fora de casa”. O que não é totalmente mentira, já que um dos filhos, Valentim, possui um quarto totalmente seu na casa, longe do convívio com os demais, para evitar brigas. Ao todo, 35 animais e duas pessoas, se dividem em uma casa minúscula, levando em consideração a quantidade de moradores.
Mesmo faltando espaço, sobra carinho e atenção para todos. Divididos em pequenas facções, como a protetora costuma dizer, os gatos vivem espantosamente de forma harmoniosa entre si, sob o comando da gata Calú. Pelos negros, com falhas aqui e acolá, causadas por um problema chamado lambedura psicogênica, Cármen Lúcia é uma gata 100% cega, mas que enxerga muito mais do que todos os animais da casa juntos. Em dias quentes, é capaz de achar o controle do ar-condicionado em qualquer lugar do quarto, para a alegria de toda a turma, que pode desfrutar de cochilos refrescantes no conforto da cama.
Brinco com Jéssica que Calú é uma gata anciã, mesmo não sendo tão avançada na idade, possui altivez e o respeito de todos do clã. Na época em que chegou, Glenda - que é formada em direito - escolheu o nome da gata por ser grande admiradora da então ministra do Supremo, Cármen Lúcia, daí o apelido Calú.
Poucas coisas são capazes de atingir Jéssica. A armadura intocável que a jovem mulher construiu ao longo dos anos, esconde um coração doce, quase totalmente domado pelos animais. O posicionamento firme nunca negou sua desconfiança total nas pessoas, e sua admiração imensurável pela natureza. Os momentos em que ela se permite fraquejar ou demonstrar, mesmo que pouco, sua sutileza em existência, sempre envolve os animais.
O amor e o afeto que lhe cabem, na forma mais pura, só pode ser retribuído por quem os sente em sua mais límpida essência. Mesmo a mais nobre das feras é capaz de se deixar dominar uma vez na vida.