A visão da maioria das pessoas sobre abrigos é a mesma de grandes cidades. Na cabeça de quem desconhece a lida diária, as ONGs possuem clínicas veterinárias e centros de reabilitação e se equiparam a um Instituto Luisa Mell, com áreas bem amplas e profissionais disponíveis 24 horas, caso haja algum resgate na madrugada. Além dos plantonistas, claro, para garantir que os internados estejam sempre muito bem assistidos. Mas a realidade existe há muitas milhas de distância.
Sem grandes tecnologias ou baias com paredes de vidro, aqui o que separa os animais antissociais dos amigáveis, são grades e paredes de madeira, que permitem a visão apenas do necessário para evitar confrontos entre eles. Nada mais. Na hora da soltura, tudo precisa ser feito em sistema de rodízio, para que todos aproveitem, mas sem brigas. Uma tarefa difícil. Enquanto uns lavam as casas destinadas aos animais, outros alimentam e fazem carinho nos focinhos ávidos por atenção.
Reparo então que um deles prefere a solidão do fundo da casinha do que a socialização com os demais. “Essa é a Isa. Ela foi resgatada no pátio do batalhão ambiental, sozinha e cheia de feridas pelo corpo. A adoção dela vai ser bem difícil, é muito medrosa e não gosta que peguem muito nela, mas aos poucos ela vai se acostumando, já melhorou bastante”.
É comum que animais abandonados ou que sofram episódios de violência, desenvolvam comportamentos reativos ou de isolamento. Não raro, eles também podem apresentar Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), que provoca sintomas semelhantes aos manifestados em seres humanos, que vão desde variação comportamental e emocional, até insegurança e tremores. A adoção de Isa é um pouco mais delicada do que as demais, já que os futuros tutores precisam de muita paciência, até que ela se adapte totalmente e recupere a confiança nas pessoas.
Há algumas baias dali, a dupla de irmãs sapecas, Pérola e Negona, esperavam ansiosas pela hora do passeio. “Ah, tira umas fotos delas para mim? Preciso arrumar adoção para as duas”. No fundo, algumas risadas e comentários de quem conhecia o comportamento das duas, bagunceiras de carteirinha e acostumadas a não colaborar com registros. “Parece até que tu não conhece elas, Lau… já viu as duas pararem um instante? É impossível tirar foto”. Consegui, bom, pelo menos de uma delas…
Alguns olhares marcam mais do que qualquer palavra no mundo será capaz de fazer um dia. A pureza de um coração livre de maldade e desprendido de todos os sentimentos ruins que existem, mas que refletem em seu brilho o abandono que jamais será esquecido. As andanças nas ruas, idas e voltas de feiras, sem nunca passar por uma família, e quando passa, enfrentar a frieza de voltar ao convívio dos seus por não ser mais desejado pela família que prometeu amá-lo para sempre. De fato, existir sem temer a indiferença não é um privilégio de todos.
Acompanho o caminho percorrido por Lau com um cachorro idoso, em passos lentos e arrastados, até sua baia já limpa e pronta para recebê-lo. Aos tombos, ela se desculpa por não conseguir evitar uma de suas quedas. “Como a gente já pegou ele assim, não sabemos se ele foi atropelado ou se foi cinomose [doença que pode causar danos neurológicos], mas ele escorrega e tropeça em tudo”. Assim que eles passam, um voluntário rapidamente começa a recolher os grãos da ração que se espalharam no chão, antes que as formigas tomassem conta.
Além do potinho cheio
Os anos passaram tão depressa que Laudenice tem dificuldades em lembrar como chegou na causa animal, e principalmente o que a levou ao ofício. Um silêncio sepulcral se instalou entre o espaço que nos separava dentro do carro. “Acho que desde… sei lá, tem muito tempo. Nunca parei para pensar nisso não. Quando foi que criaram o WhatsApp?”.
Puxando na memória, ela conta que quando o aplicativo de mensagens foi criado, o celular que ela tinha não era compatível com a ferramenta, então todos os grupos de voluntários da ONG eram feitos pelo Facebook. “Na época uma amiga minha perguntou por que eu ainda não tinha e respondi que o meu celular não ‘pegava’, e que nem ia comprar outro, porque não tinha dinheiro para isso. E ela falou que estava trocando de celular e ia me dar o dela”.
“Eu me lembro da Sofia. Era uma cachorra com um tumor gigantesco, eu saí para comprar comida e vi ela com um ‘negócio’ pendurado e fui seguindo até ver onde ela ia parar. Ela foi andando e parou em uma casa lá na ponte da amizade, fui lá e perguntei de quem era a cachorra e uma mulher disse ser a dona. Questionei sobre a ferida e a mulher disse: ‘A gente amarrou uma linha para cair’”.
"Eles amarraram uma linha
para cair o tumor, da mesma forma
que fazemos
com verrugas! Tem noção disso?".
Laudenice me conta que explicou sobre o ferimento e que aquilo não era uma verruga, pela aparência muito avermelhada, já estava em estado inflamatório e o animal, por misericórdia do destino, ainda estava sobrevivendo. “Perguntei se poderia levar a cachorra para cuidar e a mulher permitiu. Acho que foi a primeira vez, aqui em Macapá, que eu me reuni com alguém para poder conseguir recursos e fazer a cirurgia da Sofia”.
Números
Em 2015, um estudo realizado pelo IBOPE em parceria com o Instituto Waltham, demonstrou que seis de cada dez brasileiros abandonariam seu animal de estimação se fossem mudar de casa.
realidade
A pesquisa também indicou que esse é o principal motivo para que tutores deixem os pets para trás.
índices
A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que existam 200 milhões de cães abandonados no mundo todo
...
Em outras palavras, o número de animais nas ruas é quase a mesma quantidade de pessoas que vivem no Brasil.
Mato com cachorro
É comum ouvir a expressão “dias de cão” para se referir a momentos ruins, adversidades e situações difíceis de enfrentar. Mas por que usar esse termo? Inconscientemente, quando criamos termos que se popularizam rapidamente, utilizamos como base coisas que acontecem em nosso cotidiano. Isso implica dizer que nós, conscientemente, entendemos e aceitamos como é difícil ser um animal, e principalmente, um que vive nas ruas.
Mesmo ocupada com os resgates e os cuidados intensivos com os animais, Laudenice não deixou de ter uma vida para além do seu lado protetora. Com um filho para sustentar e contas a pagar, a voluntária criou um negócio que envolvesse trabalho mas sem ir muito longe do que ela gostava. Assim surgiu o ‘Bicharada Solta’, um hotel para tutores que precisam viajar e não têm com quem deixar seus animais. Trabalho e amor.
“Com o empreendimento funcionando em casa, é ainda mais difícil separar vida pessoal e profissional. Na rotina diária de trabalho, sobra pouco tempo livre para o descanso, e menos ainda para cuidar da saúde. Lau sofre de problemas sérios na coluna, e por isso vez ou outra não consegue nem levantar da cama por conta das dores. Mas os pedidos de ajuda não tiram licença médica. Mesmo sem condições, a mulher já foi capaz de sair de casa para realizar um resgate. “Os animais não têm culpa da maldade humana”.
Razão x coração
“Em 2016 eu estava andando pela praça e vi um cercadinho com vários filhotes e uma cadela adulta, já idosa, toda arrumada e enfeitada, achei ela linda. Passei diversas vezes pelo local e em cada caminhada tinha menos filhotes e ela permanecia. Anoiteceu e pensei que o evento tinha acabado, mas ela ainda estava ali e decidi levá-la para casa”. Mesmo sem saber, a adoção foi a porta de entrada para mais um voluntário na ONG.
"Quando eu cheguei lá, todo mundo ficou muito emocionado. Conversando com as pessoas eu me choquei com a realidade, disseram que ela estava lá há tempos e que voltaria para o abrigo, mais uma vez”. Bárbara Katerine, 24 anos, é a materialização da cor azul, visível nos cabelos e em absolutamente tudo que ela toca. Uma figura semelhante à Lau, não em aparência, mas em personalidade.
Duronas por fora, mas instigadas pela emoção, as duas se encontraram como almas gêmeas. “A Lau sempre diz: ‘Vale a pena, sempre vale’. Depois que a gente passa a atuar na causa, a gente entende quando ela diz que ‘sempre vale’, apesar de alguns animais não sobreviverem, apesar de nos apegarmos aos resgates e acabarmos sofrendo...
"Vale a pena porque, por um breve momento, aquele animal conheceu o amor e o carinho”.
- Bárbara Katerine
Impossível não notar o carinho com que a voluntária fala sobre a mulher que carrega sua mais alta admiração. Alternando o riso e a emoção, Bárbara comoveu-se às lágrimas. “O trabalho da causa vem para dar um propósito de vida e ela vive isso de uma forma incrível. Depois de muito tempo acompanhando o que ela fazia, ouvi minha mãe falando a frase da Lau, logo após um resgate independente que fizemos”.
No caminho de volta para casa, Laudenice vez ou outra apontava um animal na rua. “Aquela ali tá recém-parida”. Cada esquina, para um protetor, tem um peso diferente. Os resgates passam a ter cara, cor e nome. O espaço no quintal, para nós insignificante, para eles é luxo e representa um dia a menos na rua. “Eles podem não resistir, mas o fato de termos criado coragem e levantado do sofá para fazer a diferença, dá uma segunda chance para aquela vida".