Sempre brinco que os resgates mais privilegiados são aqueles feitos pela minha mãe, porque já entram na casa com o aval da chefe. Dona Ivanete finge não gostar tanto de animais. “Eles lá e eu aqui, cada um no seu canto”. Mas não consegue fechar os olhos quando eles precisam de ajuda. Na época em que Bruce morreu, ela se culpou durante dias, disse que se arrependia das vezes em que reclamou dele, que em alguns momentos ficava cansada, era apenas isso, mas que o amava. Meu coração ficou partido.
De lá para cá mamãe já fez alguns ‘bicos’ como protetora. Trouxe um cachorro, a amiga dela trouxe outro, e por último um gato. Bem, na verdade, uma gatinha. A danada era minúscula, mas muito esperta. Aparentemente faminta e bastante gripada, chegou em uma caixa 10 vezes maior que ela. Nesse dia minha mãe chegou cedo em casa, assim que ouvi o barulho do portão estranhei e fui ver. De longe avistei minha mãe com uma caixa grande, dei uma risada e abri a porta.
“Olha, minha filha, o que estava abandonado lá na escola… uma gatinha. Fiquei com pena da bichinha, de repente ela podia ir para a rua e ser atropelada ou alguém fazer maldade com ela. Aí trouxe para você ver o que a gente faz...”
Peguei um sachê e ofereci para a pequenina. Ela comia tão depressa que o molho espirrava para todos os lados, enquanto lutava para não perder nenhum pedaço da carne suculenta. A cada mordida ela soltava pequenos grunhidos de prazer por finalmente estar enchendo o estômago, vazio há tempos. “Eu vou voltar para o trabalho, viu? Cuida dela aí”.
O desafio de trazer um novo animal para casa era sempre o mesmo: como a Vandinha - a gata da nossa família - iria reagir? Batizada de Amora Regina, a gatinha multicor e mais perfeita mistura de branco, laranja, preto e um rajado à la jaguatirica, tinha olhos cativantes e serenos, com uma fofura que nunca antes havia imaginado. Por semanas o abrigo de Amora era o box do banheiro de minha mãe, para não ter contato com Vandinha. Depois de algumas vitaminas, alimento e muito carinho, ela enfim estava saudável.
De doçura, tal qual a fruta da qual herdou o nome, Amora contraria tudo o que comumente dizem sobre os gatos, ela não tem tempo para egoísmo. O desapego nunca fez parte desse animal. Se existe no mundo um ser de ousadia e encantos maiores do que os dessa gatinha, ouso dizer que mudo de nome e endereço. Sem saber, a benevolência de minha mãe trouxe a mim um dos maiores amores que já tive a felicidade de experimentar.
Companheiras inseparáveis, a única coisa que Regina já me pediu foi espaço no coração e longos cheiros no cangote, nada mais. Meu coração, por hora despedaçado, aos poucos foi sendo curado pela presença dela. Os animais sempre souberam o momento exato de cruzar meu caminho, e como poderia ser diferente com aquela que se tornaria parte de mim?
Destemida, a pequena se mostrava corajosa e disposta a enfrentar Vandinha. Mesmo franzina e desajeitada, não se intimidou pela veterana do lar. Aproximação gradativa nunca fez parte do seu feitio, extrema na personalidade e na forma de agir, Amora mostrava que veio para ficar, Vandinha querendo ou não.
A chegada da pequena não facilitou em nada minha relação com a gata mais velha. Vandinha passou a não entrar mais em meu quarto e a partir daquele dia havia decidido que eu não era mais uma de suas favoritas, na verdade estava longe disso. Rosnados e arranhadas tornaram-se a base de nosso convívio, a menos que eu ofereça um sachê, afinal, o ponto fraco dela era também um de meus maiores trunfos, assim consigo um pouco de carinho, não sem esforço, de forma - quase - natural.
Batalha de Titãs
Amora era naturalmente obediente, fazia todas as suas necessidades no ralo do banheiro assim que chegou em casa, não dava trabalho nenhum, até sofrer influência de Vandinha, a gata reacionária. Por rebeldia, e vingança pela chegada de mais um animal no seu território, Vanda fez questão de ensinar todas as malcriações que tinha conhecimento, e como um filhote obediente que era, a pequena seguiu à risca os comandos da mais velha, para azar dos humanos da casa.
De acordo com as aulas da professora, urinar no tapete do banheiro e comer a comida dos humanos escondido, era totalmente aceitável. Cocô na pia do banheiro também era correto, sem esquecer de abrir as gavetas e correr dentro dos armários. Deitar na mesa da cozinha e roer um pedaço de cada pão da sacola também podia, mas era só uma mordida em cada um. Como irmãs normais, brigas também faziam parte da relação, parcialmente fraterna, de Vandinha e Amora. No octógono, as gatas duelam pelo espaço no tapete ao lado da avó e principalmente pela cama, o solo sagrado de Vanda, agora já violado pela novata.
Contra tudo e todos
Quando Amora chegou, no mesmo segundo em que nos olhamos, entendi o propósito de sua chegada. Com a resiliência e força de uma sobrevivente, a pequena gata era na verdade uma lição de paciência, aprendizado e um ponto de equilíbrio quando o mundo está desmoronando. Sempre que ela pede, aos gritos, que alguém abra a porta, entendo a hora de parar e apreciar o momento. Não existe trabalho, carreira ou tarefa que não possa esperar alguns minutos de pausa para acariciar o gato.
Durante minhas crises depressivas Amora sempre esteve lá. Todos os dias em que não conseguia levantar da cama, ela me fazia companhia e lambia meus cabelos até me fazer sair. Os animais sempre me deram motivos para continuar existindo e nenhuma relação humana no mundo vai ser tão verdadeira e intensa quanto a troca que temos com eles.
Não por coincidência, todas as vezes em que a gata rajada adoece, eu também adoeço. Gripe, alergia, um machucado que seja, mas o fenômeno sempre acontece. A fascinante e inexplicável ligação entre nós duas é algo tão nosso que mais ninguém consegue entender. Na China existe uma lenda chamada ‘Akai Ito’, também conhecida como ‘Fio vermelho do destino’, a origem do mito diz que quando nascemos, deuses amarram um fio vermelho nos tornozelos de duas pessoas que estão predestinadas a serem almas gêmeas. Mas talvez a minha não seja uma pessoa.
Segundo a lenda, o destino se encarrega de unir as duas pessoas ligadas pelo fio, mesmo estando em diferentes lugares do mundo. Para mim não poderia fazer mais sentido, não foi coincidência Amora ter cruzado o caminho de minha mãe. Não acredito em acasos, mas sim que a vida vai colocando cada coisa em seu lugar, e o lar dela sempre foi em meu coração.