Qualquer semelhança com a realidade...
A melhor parte das histórias é ouvir cada uma delas sem saber ao certo qual parte é verdade, e o que é somente liberdade criativa. A parte lúdica se mistura aos fatos, mas se você conhece a essência, consegue separar cada uma delas, como água e óleo.
(não) é mera coincidência
Venâncio era um basilisco fazendeiro muito conhecido em sua região, costumava ter um ótimo relacionamento com boa parte das pessoas da cidade. Na vizinhança era prestativo, muito cuidadoso com os seus. Desde pequeno fora criado em um ambiente de muito amor e respeito, não era de se esperar algo diferente. Famoso, era uma referência quando se tratava de criação de animais, afinal, era um exímio cuidador de rebanhos. Além da vasta experiência em lidar com a fazenda, Venâncio também era um político atuante. Sempre na luta, gostava de mostrar o dia a dia de seu trabalho na busca pelo direito da população que mais precisava. E havia quem acreditasse…
“Não olhes para o vinho quando se mostra vermelho, quando resplandece no copo e se escoa suavemente. No fim, picará como a cobra, e como o basilisco morderá” (Provérbios 23:31-32).
Os basiliscos são serpentes cruéis, capazes de matar com um simples olhar ou com seu hálito de fogo. Egoístas e mortíferos, podem dizimar tudo ao seu redor. Não existe vida, apenas destruição e caos. A bíblia retrata os basiliscos como seres bestiais, mensageiros do pecado e figuras representantes do anticristo. Invejosos por natureza, possuem a arrogância e a cobiça como suas características principais.
A sede pelo poder que a vida pública o proporcionara vinha de seu pai, seu Otávio, homem íntegro e capaz de ir do céu ao inferno para defender o que acreditava, diferente do filho. Venâncio herdara do genitor apenas a veia política, nada mais. A oratória, o poder de convencer até o mais ignorante dos homens de que a terra é quadrada, ele puxou dos calotes - sempre muito bem dados - ao longo da vida. Essa outra face, ele exibia apenas aos poucos homens que ainda o acompanhavam e compravam as brigas daquele que eles acreditavam conhecer
O patrimônio do basilisco era o seu pedaço de terra, que na verdade não era seu, mas angariado através de usucapião, como gentileza do tempo e do dono que, também fora enganado pela lábia do bom fazendeiro. No terreno o homem acumulava algumas cabeças de gado, dois cavalos e vários cães, divididos entre animais de raça e alguns poucos vira-latas. Todos animais resgatados, exibidos com orgulho como troféus de batalhas contra pessoas que insistiam em mantê-los como posse, assim como ele também fazia, mesmo que ninguém soubesse.
No terreno existia um lugarzinho para todos, e se bem cuidado, até caberia mais agregados. A única coisa que não cabia ali era a verdade. Horácio sabia bem disso, o centauro mandatário do poderoso há alguns meses, colecionava histórias de tudo o que acontecia no lugar.
“Bom, como você sabe, o período eleitoral já vai começar e logo mais preciso sair para trabalhar na minha campanha. Minha imagem não pode ficar atrelada ao meu trabalho daqui, preciso que você tome conta de tudo por alguns meses…”.
De acordo com a mitologia grega, os centauros são criaturas nobres metade humana, metade cavalo. Detentores de virtudes inigualáveis, são muito fiéis, além de possuírem extrema sabedoria, representam força e bondade. Pelas características únicas, sua convivência no mundo dos humanos sempre foi vista como aceitável e digna de importância.
Horácio não negaria ajuda aos seus e aceitou a proposta, mas com uma condição: o apoio aos animais continuaria, além de tudo mais que eles precisassem. Acordo selado. Foi assim que o pouco de admiração que o funcionário mantinha pelo patrão se esvaiu como areia entre os dedos. Não demorou muito até que Venâncio abandonasse por completo a fazenda que sempre fora a menina de seus olhos.
Logo que tomou a frente do lugar o rapaz notou várias peculiaridades, que facilmente manchariam os longos anos de boa imagem do basilisco fazendeiro. Animais doentes morrendo aos montes misturados aos que ainda se mantinham saudáveis, falta de comida e água e um vasto campo de outros tantos problemas que se espalhavam como pólvora, esperando apenas uma simples fagulha, minúscula, mas capaz de colocar tudo ali pelos ares.
“Oi… passei o dia todo tentando falar com o senhor! Os animais estão sem comida, alguns bezerros… bom… infelizmente não aguentaram. Estão muito magros, o senhor sabia disso? Não sei… talvez a pessoa que estivesse cuidando deles não estava fazendo um bom trabalho”.
“Do que você está falando? Meus animais são fortes como touros e todos estão muito bem de saúde, nunca deixei faltar nada não”.
“Desculpe, senhor! Não foi isso que eu quis dizer, só achei que… eh… será que o senhor conseguiria mandar mais comida, e talvez um veterinário, se for possível… bom, para avaliar os animais que podem estar precisando?”.
“Então, Horácio… sabe como funciona uma campanha, né. Pouco dinheiro entra, muito dinheiro sai e eu tô fazendo das tripas coração para dar conta de tudo. Mandei meu ajudante ir deixar um pouco de mantimentos e assim que receber uma grana, mando mais”.
Dias depois a ajuda chegou. Nos mantimentos que o patrão prometera havia um pouco de ração para os cachorros e suprimento para os bezerros, mas só aquilo não era suficiente para dar conta de todos os animais da fazenda. Horácio decidiu então que chegara a hora de arregaçar as mangas, todas as suas energias agora estavam voltadas para aquele lugar e sua missão, como questão de honra e humanidade, era não deixar mais que nenhum animal morresse, pelo menos não por falta de cuidados.
Foram meses de ligações não atendidas, algumas mensagens respondidas pela metade, cobranças e pouca ajuda. O rapaz conseguira por conta própria reerguer o que há muito tempo já não existia naquele lugar, vida. Custeando quase tudo do próprio bolso e com contas altíssimas nos veterinários, Horácio finalmente havia ajudado a restaurar a saúde dos animais. Ao longo do caminho ele conheceu algumas pessoas que também embarcaram na tarefa e abraçaram a fazenda como deveria ter sido desde o início. Agora o lugar tinha um nome, uma cara, e estava sob nova gerência.
Após alguns desentendimentos com Venâncio, o funcionário decidira dar um futuro melhor aos animais, mesmo a contragosto do patrão. Em um domingo de verão, Horácio chamou a família e juntos arrumaram todos os animais para o que seria uma grande feira. A entrada da fazenda foi organizada e o rapaz confeccionou faixas e identificações para cada um dos bichos. Como conhecia os estancieiros das redondezas, o menino sabia exatamente quem teria condições de criar os animais, sem passar aperto.
Os cavalos e bezerros foram os primeiros a arrumarem novos donos. Bonitos, gordos e bem alimentados, estavam sendo entregues de lambuja por nada mais, nada menos que 0 reais. O objetivo de Horácio era apenas entregá-los a quem os pudesse cuidar. Nem os fazendeiros acreditavam, levar para casa um cavalo e alguns gados de graça? Quem acreditaria? O dinheiro arrecadado com a venda de guloseimas na quermesse improvisada ficou para manter os animais que ainda ficariam e outras despesas da fazenda. Ao fim do dia, quase todos os animais foram adotados, com exceção de alguns cachorros que ainda estavam em tratamento.
Tamanha foi a alegria de Horácio. Sua família, sempre muito contrária à dedicação infinita do rapaz com a fazenda, também comemorou o feito. Há alguns meses ninguém acreditaria que aqueles animais sobreviveriam, quem dirá arranjar novos lares, era quase um futuro utópico. O burburinho foi tanto que logo as pessoas começaram a perguntar quem estava cuidando do lugar. “É a fazenda daquele político lá? O magnata?”.
Com o dia das eleições se aproximando, Venâncio ficou ainda mais distante da fazenda e totalmente focado em conseguir votos. O que sabia era que a fazenda ainda estava ali e isso o bastava, pouco importava a que custo. Mas sua ausência causou estranheza e a fama de farsante já estava começando a aparecer. Nem os fazendeiros que, antes eram aliados e ajudavam até mesmo conseguindo votos na primeira campanha de Venâncio, ficaram do seu lado dessa vez. Com a máscara caindo cada dia mais, o que restou a ele foi apelar para o emocional, mas nem isso foi suficiente.
Com a derrota, o fazendeiro e agora ex-político, estava arruinado. Os anos de um mandato fantasma com propostas não-cumpridas, mas bem remuneradas, o deixaram mal acostumado e cheio de dívidas. Quando sua ficha caiu já era tarde demais, o baque da derrocada levou o farsante ao colapso. A partir daquele dia o seu destino mudara, e o dos animais que ainda viviam na fazenda também. Horácio foi comunicado que seus serviços já não eram mais necessários e que agora as coisas voltariam a ser como sempre foram: sob ordens do único dono daquelas terras.
O rapaz, tranquilo pelo bom trabalho feito, mas preocupado com os animais a quem dedicou parte de sua vida, relutou em abrir mão de participar das atividades, e mais uma vez foi lembrado que já não era mais bem-vindo ali. Devolvido as chaves, Horácio não conseguia se despedir dos animais, mas por hora, foi o melhor a ser feito, até que pensasse em uma alternativa, e esse dia chegou. Tempos após sua saída, inconformado e tomado por revolta, Horácio voltou às terras que um dia passaram por seus cuidados, na companhia de um antigo trabalhador que possuía as chaves dos portões. Aquele dia ficou marcado para sempre na memória dos dois.
“Não… não é possível… esse aqui é o… não, não acredito!”. Ao passo que os dois caminhavam pelo terreno, observavam as cenas de horror que se acumulavam em sua frente.
Os animais agora eram apenas uma sombra do que foram um dia. Magros, visivelmente debilitados e com parasitas por todo o corpo, eles brigavam entre si de forma violenta, onde apenas o vencedor saía vivo e com direito a uma refeição, que também seria partilhada com os outros companheiros. Sem comida, o único alimento possível ali era a carne de seus próprios corpos. Aqueles que antes eram amigos inseparáveis de jornada, foram reduzidos ao combustível que os mantinha de pé, com dificuldade, mas resistindo.
Os dois reconheceram o emaranhado de pelos e ossos que antes fora um dos cães da matilha da fazenda, carinhosamente chamado de Tito, um poodle resgatado em condições insalubres e que teve uma das patas amputada, por conta da situação em que foi encontrado. O choro engasgado, compartilhado pela dupla, foi aos poucos sendo derramado à medida que eles encontravam focinhos conhecidos e não os reconheciam nas figuras agressivas e sanguinárias que agora incorporavam.
Incrédulos e de mãos atadas, os dois foram embora indignados com a situação que presenciaram. Entraram em contato com o fazendeiro e questionaram o que estava acontecendo ali, afinal o lugar havia virado um matadouro a céu aberto, em que os animais estavam livres para matar e morrer. O destino se encarregava, aos poucos, de aliviar a dor de cada animal, mesmo que de forma repentina e cruel, mas aliviava. Na fila da morte, quem será o próximo escolhido?
O fazendeiro já não falava diretamente com Horácio, agora o contato só era possível através de uma terceira pessoa, que sabia de tudo que acontecia e mesmo assim o seguia fielmente. Como esperado, todas as acusações foram rebatidas, mesmo com registros, fotos e até vídeos dos corpos dos animais. Nada era suficiente. Dias se passaram, nas noites era impossível não pensar no sofrimento e no adoecimento dos animais, devorados pouco a pouco, na carnificina gerada pelo lugar que antes era considerado um lar para aqueles focinhos.
“Tenho medo… o que ele vai fazer com os animais? Se eu contar e levar a denúncia adiante, ele pode dar cabo dos animais para se livrar das provas… o que eu faço?”
Tempos depois, como mágica, o fazendeiro publicou dezenas de vídeos e fotos que mostravam alguns animais e a fazenda, com várias pessoas trabalhando felizes, limpando e cuidando de tudo como se aquele hábito fosse comum por ali. Agora ele ‘voltara’ a ser presença constante no lugar que defendia com unhas e dentes.
Mas as notícias correm longe, e não demorou muito tempo para que as reclamações do lugar chegassem aos ouvidos do verdadeiro dono da fazenda. De imediato ele suspendeu todas as chances que havia dado a Venâncio, acreditando cegamente na integridade que nunca existira no fazendeiro, e pediu que ele retirasse os animais de sua propriedade.
O rumo que cada animal tomou a partir daquela sentença, ninguém sabe. A esperança de Horácio era que algo lá no fundo tocasse o coração do fazendeiro, e ele tivesse feito o que o funcionário fizera meses antes, dado uma oportunidade para que os bichos pudessem viver com dignidade e sem sofrimento, mas essa nunca foi sua intenção. A fama, o reconhecimento e os holofotes, eram o seu real objetivo. A fazenda e os animais poderiam até ter sido importantes para ele, um dia, mas hoje suas prioridades eram outras.
Até hoje o fazendeiro percorre pela vida tentando ganhar notoriedade, vez ou outra, em situações que ele julga pertinentes. Mas a vida se encarrega de colocar cada ponto no seu devido lugar. Dizem que a justiça dos homens falha mas a de Deus não, por aqui, acreditamos que a natureza é a verdadeira soberana e reserva o lugar adequado a cada um que atenta contra os seus.