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De todos os anseios que carrego, a dor da perda é um dos que mais me apavora, às vezes o medo parece ultrapassar as barreiras do intangível e me cortar a carne, as maiores feridas são aquelas que não podemos ver. Poucos dias após a morte do meu cachorro, como toda criança, prometi que jamais iria ter ou amar outro animalzinho como amei Bolinha. De fato não amaria, nossos sentimentos por melhores que sejam nunca são iguais, nunca.

 

Minha família paterna sempre foi muito ligada em animais e minha criação não poderia ser de outra forma. Meu pai, então, disse que minha tia estava criando dois filhotinhos e que um seria meu, eu afirmei novamente que não queria mais nenhum outro bicho, mas me permiti visitá-los na casa de minha avó... e assim posso dizer que me apaixonei à primeira vista.

Belhinha era muito carismática, apesar de ter um nome comum, precisava diferenciá-la de alguma forma, por isso o “lh” ao invés de apenas um “l”, quando eu era pequena isso parecia fazer bem mais sentido. Ela sempre corria aos tombos com suas patas curtas e roliças e era fã de cochilos vespertinos, mas não seria minha, na verdade o seu irmão era o meu prometido, porém depois de duas mordidas no dedão decidi que ele não era o meu favorito. Papai ficou maluco.

 

- "Minha filha, essa cachorra é da sua tia, não tem como".

 

Depois de dias tentando convencê-lo, consegui. Mesmo sem dizer uma palavra senti que ele finalmente ia trazer Belhinha para mim, ser filha caçula tem lá suas vantagens.

 

Meu pai chegou de noite do trabalho e eu nunca estive tão feliz por vê-lo. Lá estava ela, dormindo em uma caixa de papelão minúscula, Belhinha, depois de ser raptada às escondidas. Minha mãe sempre dizia que eu tinha tendência em dar nomes parecidos aos animais, mas eu sempre gostei de achar que amava todos da mesma forma (hoje eu sei que isso na verdade não existe). "Tu és tão bonitinha, eu gosto de ti, sabe? Mas não posso gostar mais do que do Bolinha, tá bem? Mas eu gosto". Memórias.

10 anos e muitos chinelos depois, Belhinha se tornou a cachorra rabugenta mais amada, aprendi a decifrar e respeitar todas as suas vontades e principalmente aceitar suas condições na hora do banho: mangueira no corpo, no focinho só água da cumbuca, o ritual exigia uma série de preparações intensas. Nós duas sempre nos demos bem porque conseguíamos entender a parte incompreendida uma da outra.

Há alguns meses ela lutava contra um tumor mamário muito agressivo que se espalhou mais rápido do que pudemos prever, a cirurgia já não era mais uma opção viável e mesmo que fosse, corria o risco de ter alguma complicação durante o procedimento. Eu precisava tomar uma decisão.

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Escolher entre a vida e a morte não é um desafio muito justo

Afinal, quem escolheria ter que partir? Eu escolhi. A indecisão é inerente à minha natureza, mas pela primeira vez eu escolhi o caminho mais simples, mesmo sabendo que seria o mais doloroso. Em uma ligação com a veterinária que faria a cirurgia, comuniquei que já havia decidido o que seria feito. Entre lágrimas e diálogos monossilábicos, disse em voz alta as palavras que jamais imaginei falar um dia. “Eu acho que já está na hora de deixar ela ir... ela está sofrendo muito, não quer mais comer, não levanta, as patinhas estão muito inchadas, não aguento mais ver ela assim e sei que ela já não aguenta mais sentir dor”.

 

No dia seguinte mesmo levaria ela à clínica, mas antes de sair de casa Belhinha deu sua última volta pelo quintal, cheirou todos os cantinhos possíveis que percorreu ao longo dos seus 10 anos muito bem vividos e ao se aproximar do carro me olhou de forma acolhedora.

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"Estou pronta"

Ajudei a colocá-la no carro e seguimos.

Ainda lembro do cheiro da sala de atendimento, do frio da maca onde ela estava e do medo que ela sentia por estar ali novamente, agora pela última vez. Minha tristeza parecia aumentar a cada minuto e eu podia sentir meu coração se partindo em pedaços miúdos que jamais poderão ser colados. “Laura, eu preciso da sua assinatura para o termo de responsabilidade”. Minhas mãos tremiam e a caligrafia ficou difícil de entender, mas bastava. “Ela vai cair aos pouquinhos, só segura a cabeça dela”O paraíso dela estava logo ali.

Os animais, mesmo cansados, sentem quando precisamos deles por perto, é por isso que muitos ainda que em estados graves como Belhinha resistem tanto à partida. Isso é um fato que eu pude comprovar ao longo da minha vida convivendo com os animais, o nosso tempo é diferente do deles e algumas coisas a ciência jamais vai poder explicar, como a pureza na essência deles. Ela sabia que eu ainda precisava dela e aguentou até que eu estivesse preparada para encarar que a luta já havia encerrado, ainda que ela já soubesse disso bem antes de mim. Vou sentir falta dos nossos banhos e dos pelos na minha roupa depois dos abraços de urso que compartilhávamos, da alegria na hora de sair de casa e do brilho dos olhos dela.

Você nunca pertenceu a mim, na verdade eu é quem pertenci a você. Eu te amei, mas desde sempre você cuidou de mim e sei que ainda vai cuidar. A casa das 7 mulheres perdeu uma das suas.

Ter um bichinho de estimação para mim sempre foi uma necessidade básica, como comer e dormir. Não pela companhia, mas pela ligação, o que me rendeu o apelido de Drª. Dolittle por algumas pessoas. Desde pequena convivi com animais e sei como é incrível a diferença que faz para uma criança ter essa experiência de poder cuidar de outro ser e com isso aprender a ser mais sensível com o próximo. Qualquer lição pode ser ensinada de forma afetuosa sendo através do amor. Meu carinho intrínseco pelos animais tem influência do meu pai, que viveu boa parte de sua vida no interior e sempre gostou muito de cuidar de cachorro.

Por volta dos meus 6 anos, tive uma cachorra mandona que atendia por 'Lulu' (mas na verdade chamava 'Mel', porém meu pai sempre funcionou melhor com nomes repetitivos). Lulu era uma vira-latas que vivia no canto de um açougue próximo à minha casa na época, e era alimentada vez ou outra pelo dono do estabelecimento, mas sempre que meu pai passava lá ficava com vontade de levá-la para casa. Um dia cansado de ver a bichinha jogada às moscas, papai a trouxe para casa, o que causou uma baita discussão entre ele e minha mãe. Levamos um tempo para convencê-la de que seria incrível tê-la em casa, e que ela também ajudaria na segurança e na caça de ratos. Tudo mentira, bom, pelo menos a parte da segurança, porque até então a cachorra era bem mansa.

Com o passar do tempo arrumamos um gato, desses rajados que parecem animais selvagens, o que na verdade ele era. O 'xano' como costumávamos chamar, era dos telhados da vida e não abria mão disso, na verdade nunca o adotamos de fato, ele só apareceu em casa um dia, o alimentamos e vez ou outra ele aparecia de novo. Era a desculpa que dávamos à minha mãe para ela não sentir que nós tínhamos mais um bicho. Mas um período depois ele deixou de aparecer, e meus pais me convenceram de que ele só tinha arrumado uma namorada por aí.

Quando nos mudamos para um apartamento, levamos a cachorra, claro, mesmo ela vivendo meio que de forma 'ilegal', já que não era permitido animais de médio e grande porte, e Lulu tinha um tamanho mediano. Sempre que a bicha latia era uma confusão só para tentar acalmá-la e não criar alarde nos vizinhos. Até que um dia, em uma visita rotineira do dono, ele ouviu os latidos e perguntou se tinha cachorro ali, meu pai sempre muito convincente logo tratou de contornar a situação e acabou se entendendo com o síndico.

Na época do cio era um Deus nos acuda, a cachorra fugia e saíamos todos atrás, era praticamente impossível conseguir que ela voltasse, mas sempre voltava. Quando nos mudamos para a casa da frente ficou ainda pior, antes da construção de um muro na frente da casa, usávamos uma cerca grande de madeira para separar, o que para um cachorro no cio não significa nada... nunca vou me esquecer do dia em que um cachorro entrou, pegou a Lulu e saiu correndo com ela pela rua ladeira acima. Digo “saiu correndo com ela” porque para quem não sabe, quando os cachorros estão cruzando, ficam 'grudados', e nada no mundo é capaz de fazer soltar até acabar. Resumo da história, esperamos acabar, voltamos com ela para casa e a barriga começou a crescer.

Na primeira barrigada dela, como era mãe de primeira viagem, todos os seus filhotes foram morrendo aos poucos, e o único que ela deixava se aproximar era o meu pai, então minha mãe, minha irmã e eu só olhávamos da janela do quarto. Depois da morte dos filhotes, naturalmente ela ficou muito triste, comia pouco, quase não levantava e nem se animava para fugir. Mas no cio seguinte lá estava ela novamente, e assim veio mais uma gravidez... dessa vez o 'rapazinho' foi mais educado e deu as caras aqui em casa. Na segunda experiência ela já era uma mãezinha totalmente diferente, até nos deixava chegar mais perto, desde que não se aproximasse demais.

Mesmo com uma segurança maior para cuidar dos filhotes, dois deles não resistiram, ela ficou triste e sem comer por um dia, logo depois a fome começou a bater e as crianças que ficaram cobravam por mais leite. Doamos todos os filhotes, contra a minha vontade, porque por mim ficaríamos com todos, mas minha mãe tratou logo de arrumar dono para eles antes que eu me apegasse, que aí não tinha mais volta. Sabendo que se eu quisesse ficar com os bichos certamente tentaria convencê-la a aceitar, ela me proibiu de dar nome aos filhotes, para que eu não me afeiçoasse demais. Não deu certo. Fred, Rex, João, Rox, Mel (realizei na filha o que não deu na mãe), todos já estavam mais do que batizados, mas ainda assim foram para novos lares.

Dois deles, Rex e Rox, a dupla dinâmica, foram levados para o terreno dos meus padrinhos, e lá viveriam com os caseiros. Rox morreu depois de um tempo, era muito bravo e meus tios suspeitam que alguém o tenha matado. Rex voltou para a cidade, morreu velhinho e sem os dentes. Com a audição já prejudicada pelo avanço da idade não conseguia mais atender aos chamados, mas sempre me reconhecia nas visitas e sorria banguela pedindo um carinho na barriga.

Como de costume, convenci minha mãe a ficar com um  dos filhotes de Lulu. 'Bolinha' fazia jus ao nome, era muito peludinho, andava pulando porque era muito gordo e suas patas eram curtas e tortas. Era o xodó, mãe e filho viviam juntos, ele como sempre guloso, não havia largado o peito da mãe ainda, mas já comia ração, e sua vida era só comer e dormir. Levava para passear na casa da minha avó, carregava para cima e para baixo, o que deixava Lulu enciumada já que a cria era dela.

 

Um dia minha mãe foi dar um osso para Lulu, e acidentalmente acabou dando também um pouco de feijão, Bolinha sem pensar duas vezes comeu também, e foi o suficiente para que ele passasse mal. Meu pai o levou ao veterinário e quando voltou para casa foi apenas para dizer que ele havia partido. Em uma caixinha, foi assim que ele chegou.

Enquanto meu pai cavava um buraco no quintal nós chorávamos desenfreadamente, minha mãe se culpava por ter dado o feijão e Lulu ainda não sabia. Depois de enterrá-lo, minha irmã e eu colocamos dois galhinhos com flores em cima, e meu pai jogou mais uma pá de areia. Quando soltamos Lulu, ela correu e ficou agitada, como se soubesse que alguma coisa não estava bem, e sabia. Mais uma vez ela ficou muito triste, deitava em cima do lugar onde ele estava enterrado, tentava cavar às vezes e fazíamos o possível para que ela não passasse por ali sozinha.

Por ser muito pequena, Belhinha ainda não podia ficar ao lado de fora da casa como Lulu, e também porque a filha mais velha não a aceitava muito bem. Ao longo do tempo e depois de Belhinha ter crescido bastante, elas viraram até companheiras, mas não durou muito tempo já que logo Lulu teve mais uma gravidez (sim, sua terceira barrigada), dessa vez ela teve seus filhotinhos, todos lindos e saudáveis.

A cada gravidez dessa cachorra ficava mais difícil não querer ficar com os bichinhos. Mais uma vez minha mãe conseguiu dono para eles, mas as fêmeas sempre eram as últimas a ganhar um lar, e assim ficamos com a única que sobrou, “Tuti” (meu pai ataca novamente), diferente dos outros esse nome tinha explicação, segundo ele, esse era o nome de uma marca de ração que ele viu por aí.

A partir do nascimento da criançada, Belinha e Lulu não se deram mais bem, eram brigas constantes, daquelas bem feias mesmo, de tirar sangue. Uma delas inclusive machucou bem feio meu pai. Em um dia que estávamos só nós dois em casa, as duas se estranharam e nós tentamos separar, meu pai se colocou entre elas e levou a pior, lembro que fiquei paralisada ao ver o tamanho da ferida que se abriu em sua mão e do sangue que não parava de sair. Chorei muito e fiz tudo que consegui no momento, pelo menos tudo o que cabia a uma criança assustada.

Minha mãe sempre pediu que ele colocasse para adoção uma delas, dizendo que as coisas poderiam ficar bem feias, mas ele nunca aceitava, e nós também não. Depois do divórcio dos dois, minha mãe deu Lulu em um dia que eu ainda estava dormindo. Acordei com a estranha sensação de ter ouvido uma voz desconhecida e senti que alguma coisa estava errada, perguntei logo pela cachorra e mamãe com calma me disse que tinha dado para um senhor que queria um bicho para fazer companhia em seu terreno. Fiquei desolada, afinal era minha primeira cachorra, e ainda por cima tinha a Tuti, que já estava grande, mas que obviamente sentiria falta da mãe. Aos poucos entendi que foi melhor a melhor opção.

Tuti era muito apegada ao meu pai, e com a saída dele de casa por conta da separação, ela ficou muito triste, tempos depois foi separada da mãe também. Nunca mais foi a mesma. Costumamos dizer que ela parece estar sempre ‘meio triste’. Assim, só restou Belinha e Tuti, que nunca foram lá melhores amigas porque Belinha sempre foi muito ciumenta, já Tuti, pacífica, até demais...

Em 2016, pouco antes de entrar na universidade, a mãe do meu namorado na época me ofereceu um filhotinho, disse que a cachorra de sua irmã acabara de ter cria e a dona estava procurando pessoas confiáveis para adotá-los, prontamente disse que adoraria, mas que minha mãe não ia aceitar, ainda mais com nossa casa em obra, ia ser uma bagunça só, além de que já tínhamos duas. Ela insistiu, mandava fotos, e eu ficava cada vez mais apaixonada, mostrei as fotografias para minha irmã, e como ela ganhava bolsa poderia bancar as despesas dele como brinquedos, ração e tudo o que ele precisasse, então naquele momento só precisávamos convencer nossa mãe.

Depois de um trabalho de equipe muito bem feito, ela aceitou. A mãe do meu ex-namorado disse que cuidaria dele enquanto a casa estivesse em reforma e assim aconteceu. Ele era um poodle preto lindo, então demos o nome de “Bruce”, uma sugestão da minha irmã, como referência ao Batman. Eu ia visitá-lo, sempre pedia para me enviarem fotos e era uma festa só, foi o primeiro cãozinho que minha mãe aceitou para ficar dentro de casa, ele era diferente, sempre foi.

Quando me avisaram que ele estava no veterinário, sabia que não era algo bom, do contrário logo teriam me contado. Sabia apenas que ele tinha passado muito mal e estava internado. Quando cheguei na clínica, chamei por ele e ele se animou um pouco, mas não levantava, não tinha forças e gemia de dor, comecei a chorar por não saber o que fazer, por medo de perdê-lo, mas principalmente por assistir ao sofrimento dele e não poder fazer nada.

A mãe do meu ex finalmente me explicou o que havia acontecido, um casal de amigos deles estava na casa visitando como de costume, a mulher não gosta de bichos, então eles trancaram a cachorra deles e o Bruce em um dos quartos, lá ele engoliu um absorvente interno que estava na estante, bebia água o tempo inteiro e quanto mais líquido ele ingeria, maior o absorvente ficava. Ele foi levado no primeiro ‘veterinário’, lá o cara teve a brilhante ideia de tentar puxar o absorvente com uma pinça pelo ânus do cachorro, conseguindo destruir a uretra dele, o que prejudicou completamente a qualidade de vida de Bruce a partir daquele momento.

Não sei explicar a sensação que percorreu o meu corpo no momento em que ouvi aquilo, um ser tão pequeno e já passando por tanto sofrimento. Como perceberam que na verdade ele estava piorando, o levaram para outra clínica onde ele ficou internado, recebendo substâncias para tentar expelir o corpo estranho para evitar ao máximo a cirurgia, já que ele era muito novinho.

Em meio a essa confusão, uma amiga próxima na época tinha acabado de entrar na universidade também, e por estar perto de completar 18 anos resolveu fazer uma festa para comemorar o aniversário e a aprovação no vestibular. O problema é que a festa ia ser em um terreno longe da cidade, e só voltaríamos no dia seguinte, mas eu não queria ir com o Bruce daquele jeito. Todos me convenceram de que não adiantaria ficar, já que não poderia vê-lo. Então fui, mesmo com o coração apertado.

Nos dividimos em várias viagens já que eram muitas pessoas e não caberiam todas no carro de uma só vez, fui na primeira leva para ajudar na organização da festa. A irmã do meu namorado ficou na última viagem, porque assim que saísse da aula, ia em casa arrumar as coisas, então ela ficou de me atualizar sobre a situação do Bruce quando chegasse no terreno. Por estar com a uretra danificada, ele não conseguia urinar e muito menos expelir o que ainda estava nele, o médico resolveu marcar a cirurgia dele para às 18h daquele mesmo dia. Quando chegou, ela disse que ele já tinha sido operado, que a cirurgia foi muito delicada, mas que correu tudo bem.

Resumidamente, a cirurgia foi para a colocação de uma sonda para que ele pudesse expelir a urina, já que com o rompimento na uretra, seria quase impossível que ele conseguisse usar o caminho original. Dessa forma, a saída de urina dele seria igual a de uma fêmea, próxima ao ânus. Nos primeiros dias de pós-operatório ele ficou ainda na casa do meu namorado, e só depois veio para casa. Foi uma recuperação muito dolorosa, tanto para ele quanto para nós que víamos ele daquela forma.

 

Foram noites sem dormir, literalmente, porque ele não poderia tirar a sonda de forma alguma antes da cicatrização total do canal. Ele usava fralda 24 horas por dia. A rotina era tirar a fralda suja, higienizar muito bem a incisão, usar duas pomadas secativas, passar um spray para evitar infecção e colocar a fralda novamente. Sem contar os dois remédios que ele tomava, que era uma lambança só, já que os dois eram líquidos.

Era muito difícil lidar com toda a rotina do tratamento, chegava momentos em que estávamos tão cansados sem dormir que o estresse era inevitável. Às vezes quando todos conseguiam dormir, inclusive ele, ouvíamos ele dar um grito desesperado, porque tentou mudar de posição e o corte doeu, depois disso levava um bom tempo para ele encontrar uma posição que não o machucasse. Depois de três semanas, e muitas tentativas fracassadas de arrancar a fralda, ele finalmente conseguiu, não só arrancou como destruiu a sonda, e ficou parado um tempão, sorrindo para mim.

Como a sonda ainda precisava ficar mais um tempo, ele precisou passar por mais uma cirurgia para recolocá-la. E assim foram inúmeras idas à clínica, cada uma acompanhada de um problema diferente. Vez ou outra ele passava muito mal por não conseguir fazer as necessidades, se apertava muito e ainda assim não saía nada, e era preciso levá-lo ao veterinário novamente.

 

Todas as vezes em que entrava no carro ele já sabia para onde ia, mas ainda assim se alegrava. Lá era querido por todos, recebeu até o título de ‘guerreiro’, pois segundo os médicos, ele precisava realmente de um milagre para sobreviver, mas tinha uma força muito grande e não se entregava em momento algum, apesar do pouquíssimo tempo de vida.

Nos intervalos entre as consultas e as dores, Bruce era um filhote feliz, corria muito, brincava, e nos dias de calor saboreava um picolé caseiro feito com ração, água e sachê de carne defumada. Ele tirava o picolé do pote de comida e rolava pela casa toda, deixando um rastro molhado por onde passava. Nunca foi muito de gostar de ficar só, e todas as vezes em que precisávamos sair era um esquema de fuga muito bem bolado: a televisão precisava estar ligada, de preferência com um filme de cachorro passando, para que ele se distraísse, e só então poderíamos sair tranquilas. O único problema era quando ele notava que estava só, então o drama começava, era um escândalo, e como se não bastasse, fazia 'cocô de birra' em todos os cantos, inclusive em cima do roteador da internet.

Após a 'recuperação' do Bruce, precisávamos deixá-lo sem fralda, para que ele se lambesse e pudesse estimular a saída da urina, mas como ele não tinha controle, andava literalmente pingando xixi por onde passava, e isso o incomodava muito, porque vivia molhado o tempo inteiro. Então era preciso sempre lavar da cintura para baixo e depois secar, várias vezes ao dia. Minha mãe ficava extremamente estressada, pois como ele estava o tempo inteiro urinando, era preciso lavar os panos em que ele se enxugava, onde deitava, e tudo aquilo que ele sujava, além de ter que passar pano na casa toda constantemente, porque o cheiro de urina parecia estar entranhado nos cômodos.

Quem tem animal e mora com os pais sabe que sempre ouvimos as mesmas frases: “Não quero mais bicho nenhum dentro de casa”, “Qualquer dia eu sumo e deixo vocês e esses bichos aqui!!”, “Eu não vou cuidar, se virem!”, e o auge “Eu vou morrer de tanto cuidar de bicho”. Mas a real é que eles amam tanto quanto a gente, às vezes até mais, e minha mãe não é diferente. Ela sempre gostou muito de ouvir música, e seu principal companheiro é o aparelho de rádio que fica na cozinha, sempre tocando uma música agitada, que é o que ela mais gosta de ouvir.

 

Vira e mexe eu passava e via ela dançando com o Bruce no colo, rindo alegre, chamando de “meu bebê”. Sempre era quem mais sofria nos momentos das trocas de curativo, porque dizia que não aguentava vê-lo gritar, eu também não, mas quando cuidamos de bichos, em certos momentos, é necessário ter um pouco de sangue frio. E assim, quando acabávamos, ela me ajudava a consolá-lo, porque ele ficava choramingando, como se estivesse reclamando e brigando com a gente.

Ele cresceu, não muito, mas cresceu, e a cada dia que passava eu agradecia por tê-lo ainda conosco e encher nossas vidas de alegria. Infelizmente, não durou muito. Em um determinado dia, ele começou a ficar um pouco cabisbaixo, não estava me esperando na porta quando eu voltava das aula e estava sentindo dores. Como de costume sentei no chão e o coloquei de peito para cima sobre minhas pernas para fazer massagem em sua barriga, como o veterinário orientou, para estimular o intestino a funcionar e ajudar na eliminação da urina, mas nesse dia não adiantou. E aos poucos ele foi parando de beber água, porque com a bexiga cheia e sem conseguir colocar para fora, era impossível tomar. Comida? Nem pensar!

No dia seguinte, ele acordou fazendo força, muita força, para tentar fazer xixi e também cocô, fiz massagem novamente para ajudar, e ele chorava muito, porque eu tinha que apertar para poder fazer efeito. Eram os piores momentos para mim, ouvi-lo gritar de dor e não poder parar, porque querendo ou não só assim ele conseguiria, e conseguiu. Veio o primeiro jato, e em seguida ele conseguiu soltar tudo, finalmente o alívio, dele e meu.

 

Depois disso ele comeu um pouco, bebeu água, mas ainda não estava bem e voltou a piorar, nada parecia resolver. Vômito, diarreia, falta de ânimo e as coisas só desandavam cada vez mais. Nesse dia, eu tinha uma aula muito importante, e de uma disciplina que para mim era um bicho de 7 cabeças, não poderia faltar. Antes de sair esperei minha irmã chegar para que ele não ficasse sozinho, assim que ela chegou, saí, mas levando uma culpa de não estar em casa cuidando dele.

Sempre com o celular na mão para não perder nenhuma mensagem sobre ele, recebi um áudio da minha irmã, com a voz trêmula perguntando a que horas voltava para casa, porque ele não estava nada bem, nem levantava a cabeça mais quando o chamavam. Era 20h30 e minha aula só acabava às 21h40, mas saí mais cedo, peguei o primeiro ônibus e voltei para casa. Assim que cheguei demorei uns minutos a entrar, não sabia se era o último dia dele, ou se era mais uma das crises que logo mais passavam, mas tive medo.

 

Como um amigo fiel, ele sempre saía do quarto com minha mãe para me receber na porta, e esperava, até ela abrir e ele finalmente poder pular nas minhas pernas e latir perguntando como foi a aula. Nesse dia não foi assim, fiz o caminho da porta até o quarto sozinha, sem a companhia dele, enfim entrei e logo vi que ele estava deitado, sem sequer levantar a cabeça ao ouvir minha voz, mesmo depois de minha mãe dizer: “Bruce, olha quem chegou!”. Ele nem se mexeu, mesmo que quisesse não tinha forças, não naquele momento. Choramos a noite toda.

Ele sempre dormiu no mesmo quarto que minha mãe e eu, o quarto da minha irmã era sempre muito frio, e ele chorava de madrugada, então sempre dormia conosco. Nesse dia seguimos a rotina e o levamos para o nosso quarto, arrumamos o lugarzinho dele ao nosso lado e deitei com um braço ao alcance dele, para não perder o contato. Dei boa noite à minha mãe, e ela me abraçou dizendo que tudo ia ficar bem.

 

Ainda chorando rezei para que ele não sofresse mais e que tudo não passasse de uma fase ruim. Ao fim da prece, ouvi suspiros profundos, como se ele estivesse sufocado. Chamei por ele, ele me olhou e então sua cabecinha caiu na minha mão. Gritei em desespero para que minha mãe ligasse à luz e disse que ele havia morrido, soluçando e chorando cada vez mais percebia que ele já não estava mais ali. Naquele momento perdi meu companheiro.

Bruce estava destinado a ser um cãozinho diferente, eu sei que todos dizem isso dos seus bichos, mas ele de fato era. Acreditei cegamente que ele era um pequeno milagre quando minha mãe o aceitou em casa. Nunca tivemos um cachorro que vivesse dentro de casa realmente, ele foi o primeiro. Acreditei quando na primeira cirurgia que ele fez o veterinário dizer que “só Deus poderia salvá-lo naquele momento”, porque era quase impossível que de sobreviver, mas ainda não era o momento dele, ele ainda tinha uma missão.

O Bruce chegou na minha vida em um momento muito difícil, estava passando por problemas pessoais e de saúde, mas ele me obrigou a ser forte, por mim e por ele. Fazíamos companhia um ao outro, brincávamos, dava banhos nele e ele adorava, gostava de beber a água que caía da ducha, às vezes me fazia perder a paciência, mas logo em seguida me pedia desculpas com lambidas na orelha.

Não tenho dúvidas do poder terapêutico e milagroso que é ter um animal convivendo em casa, e mais do que ninguém sei que Bruce me curou. Talvez essa fosse sua missão aqui, talvez por isso ele tenha me esperado chegar da aula para se despedir, talvez ele estivesse se obrigando a ser forte naquele momento.

Agradeço pela vida do Bruce, minha principal motivação para seguir na empreitada de escrever sobre animais. Sou grata por tê-lo conhecido, e honrada por tê-lo cuidando de mim. Onde estiver, Bruce, saiba que você sempre vai estar eternizado aqui, obrigada por todo o amor compartilhado, por me ensinar a olhar as coisas de uma forma positiva, mesmo quando tudo estiver dando errado e por ter sido parte da minha vida. Amar também é deixar ir e saber a hora de dizer “Adeus”.

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