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A natureza possui formas peculiares de se reinventar. Nada é perdido, tudo é passível de transformação, inclusive pessoas. A conexão, o amor pela natureza e todas as criaturas muitas vezes vem de berço, mas em Allana essa sinergia é indissociável do seu eu.

Na mitologia grega, ‘Gaia’ significa ‘Mãe-terra’. Na simbologia, ela é a base mais potente e com capacidade de gerar vida. A antiguidade conta que Gaia foi originada do Caos, representado pelo vazio, junto com Tártaro - o abismo, Eros - o amor, Nix - a noite, e Érebo - as trevas.

Como a deusa da terra, capaz de juntar tudo e todos, Allana Feijão, 28 anos, é uma líder nata, mas como um ser humano comum, também enfrenta dilemas dentro e fora da causa animal. Quando pergunto se ela já se imaginou fazendo outra coisa da vida, recebo um silêncio seguido de uma resposta aparentemente bem pensada. “Eu sempre tentei me imaginar fazendo outra coisa, porque ainda não achei como viver disso. A causa, desde o início para mim, é um trabalho social, mas já tentei de muitas maneiras ver como eu poderia trabalhar com algo atrelado aos animais. Mas nunca me imaginei largando, já pensei em tentar diminuir minha atuação, mas largar a causa não”.

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Durante muitos anos eu vivi e sobrevivi para a causa animal

Quando começou, há bastante tempo, ela resgatava cachorros abandonados e os levava para abrigos já existentes na cidade. Com a rotina cada vez mais intensa, decidiu transformar seu perfil na rede social em uma página voltada quase exclusivamente a ajudar animais que precisam de tratamento e adoção, além claro, de algumas fotos e vídeos dos peludos da casa. “Até hoje tento conciliar a vida pessoal com a causa, para ter os dois”.

Lambidas no rosto e pelos na roupa nunca incomodaram Allana. Seu jeito, sempre pé no chão e ao mesmo tempo sonhadora, possibilita que ela transite nos mais diversos grupos, de pessoas e animais. Em sua lista de resgates ela acumula, além de gatos e cachorros, outras espécies mais exóticas, incluindo uma coruja - que foi solta na natureza - e um urubu. Sim, um urubu! O animal viveu por meses com Allana, já que ele possuía uma deficiência nas patas traseiras, que dificultava que ele pudesse caminhar ou até mesmo se equilibrar.

Foram meses cuidando do animal, idas e vindas ao veterinário e muita dedicação, mas infelizmente ele não resistiu. Batizado de ‘UruGATU’ - por ser tutelado da ONG Gateiros Tucujús, da qual Allana é presidente - o animal passou por todas as etapas que um resgate convencional: consulta, cuidados, alimentação adequada e tudo mais que fosse necessário. Pela deficiência, Uru não podia ser solto em vida livre e, se estivesse vivo, dificilmente conseguiria se recuperar das deformidades, já que os médicos acreditavam ser fruto de uma má formação genética.

O gigante notável

“Os sonhos ao longo dos anos já variaram bastante. Já sonhei em ter um abrigo equipado com condições de manter os animais, veterinários, castração, ajuda psicológica para os voluntários. Com o tempo fui deixando de lado essa ideia. Hoje em dia tenho muita vontade de, através da ONG, ter um programa de castração social particular, porque sabemos que é muito difícil ter o apoio do poder público. Seria um sonho que a ONG tivesse condições de ir nas comunidades que precisam de mais ajuda”.

Herança da natureza

A primeira entrevista com ela foi em 2016. Agora, voltando à casa de Allana alguns anos depois do início dessa jornada, vejo o quanto tudo por aqui mudou, a começar por ela. Mulher das exatas, agora ela havia se multiplicado. Durante o período da finalização do projeto de conclusão de curso, ela engravidou do primeiro filho, um susto muito bem-vindo. Diferente no nome e na criação que receberia, ‘Alu' cresceria junto aos animais e talvez vegetariano, como a mãe, mas certamente seria uma criança especial, e assim aconteceu.

“Eu quero criá-lo em um meio empático, com carinho e amor, pelos humanos e principalmente pelos animais. Tenho trabalhado muito isso em mim, para que eu possa ensiná-lo da melhor maneira a respeitar os animais e entender que eles não estão aqui para nos servir”.

Entrando novamente pelo portão de seu abrigo de sempre, Balto corria mais feliz que nunca, parecia que já entendia que sua próxima saída dali seria para o seu lar definitivo. Mas não foi. O casal desistiu da adoção e já não parecia mais tão interessado. Depois disso, outras pessoas também quiseram o cachorro, mas nenhuma deu certo, até que o seu dia chegou. Balto fora adotado por uma família amorosa, em que o receberia como filho único, uma dádiva de poucos. Quintal espaçoso e muro bem alto, para garantir que a traquinagem do menino não passasse dali. Essa foi uma das melhores adoções de Allana.

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Em 2019, no evento organizado anualmente pela ONG no mês de setembro - alusivo ao combate e prevenção da depressão e do suicídio - a protetora levou seus resgatados para a feira de adoção, todos saudáveis e prontos para achar um lar, inclusive Balto. Enérgico e saltador, o cachorro vira-latas preto e branco era um xodó de Allana, e já tinha sido o causador de alguns desentendimentos entre ela e a família.

Resgatado com um caso de miíase nas costas, o animal estava sendo devorado vivo por larvas e por isso estava arredio e procurou o terreno do vizinho para se esconder. A voluntária cuidou do cachorro, castrou e abrigou o travesso até que ele encontrasse um lar, o que não foi uma tarefa nada fácil, já que Balto não se dava bem com outros machos e bom, os novos tutores deveriam estar dispostos a perder muitos objetos ao longo do caminho.

Naquela feira de adoção, um casal se encantou por Balto e decidiu ficar com o cachorro. Allana foi às lágrimas, era difícil não lembrar de todo o caminho que ele percorreu até ali, agora ele finalmente teria uma família. No dia, a protetora disse que ele ainda não iria com os dois, pois ela gostaria de levá-lo pessoalmente, para poder conhecer a casa que seria o novo lar do animal, e eles aceitaram.

Os olhos atentos e curiosos da criança, a todo instante, procuram pelos cachorros que correm pelo quintal. Desde muito pequeno, Alu já aprendeu que alguns carinhos podem ser feitos, outros nem tanto. Quando ainda era um sopro no ventre de Allana, seu amigo de barriga era o gato Jovino, presente em todos os cochilos da jovem mulher, o animal nunca abriu mão de estar perto. Mesmo não sendo tão fã do bebê, começou a adotar hábitos que antes eram exclusivos de sua relação com a mãe, como as lambidas na cabeça, hoje, já compartilhadas com o irmão humano.

“Não espero que ele seja atuante na causa animal como eu, mas eu quero ensinar esses valores para ele e que, com o passar do tempo, ele possa se conhecer e descobrir o que gosta e como se sente melhor ajudando, para escolher a causa social que ele se sente mais à vontade e se sinta feliz”.

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“A cada dia que passa sinto que eu estou sendo mais eu mesma, sempre mudando, mas também me conhecendo cada vez mais. A causa me ensinou muita coisa… nossa… muita coisa mesmo! Mas a maternidade me ensinou sobre empatia. Sinto muito mais amor pelo próximo e tenho muito mais esperança, isso eu devo à chegada do Alu… sinto que podemos melhorar o mundo”.

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Durante a minha jornada, antes de ter o bebê, oscilei muito em acreditar na melhora da sociedade, de que podemos manter a natureza e preservar, mas com a chegada dele, esse sentimento de esperança aflorou de uma forma gigantesca. Voltei a acreditar em ver um mundo vivo. 

A rede de apoio que Allana teve durante a gestação ainda é muito presente e, por conta dela, a voluntária conseguiu manter os cuidados com os animais. Mas alguns, como ela mesma costuma dizer, só podem ser cuidados por ela, como é o caso de Aiva.

A soma dos afetos

O início de sua jornada pela proteção animal também começou através da compra de um bichinho. Apaixonada por cães de grande porte, o sonho da jovem era um Dogue alemão de nome Hertz. Infelizmente o destino do cachorro foi um pouco diferente do que ela havia imaginado. Sem origem da criação do animal e com total desconhecimento de como as coisas funcionavam em canis voltados para a venda de filhotes de raça, Allana acompanhou Hertz durante toda a vida em consultórios veterinários, mas nem isso foi o suficiente.

Com a partida do grandão, Gaia começou a adentrar no universo da causa e pesquisar mais sobre exploração e tudo o que envolvesse esse assunto. Até o dia em que sua família, vendo o sofrimento pela perda do cachorro, trouxe mais uma gigante para a vida dela. Sunshine foi a luz depois da tormenta. Da mesma raça do irmão que partira tempos antes, ela também traria felicidade e mais consciência para a voluntária.

“Agora que sou mãe, percebo que tenho um olhar diferente das outras pessoas em relação a criar um bebê humano e ter animais convivendo próximo. Sinto que tenho que estar mostrando como é esse relacionamento ou conversando sobre isso, para quebrar algumas barreiras do preconceito com animais no ambiente da criança”.

A gravidez distanciou Allana dos resgates e até mesmo do acompanhamento dos animais que ficam no gatil e nas áreas do quintal. Por conta dos riscos durante a sua gestação, o médico a proibiu de fazer esforço e seus dias ficaram mais restritos ao quarto. Hoje, aos poucos, ela vai tentando conciliar maternidade e proteção animal em um equilíbrio meio desajeitado, mas que funciona.

“Ainda tenho essa batalha interna de culpa, por sentir que não consigo dar tudo para eles nesse momento, estou trabalhando esse sentimento em mim, mas tirando isso tem um prazer enorme em ver meu filho crescendo no meio dos animais, com amor”.

À beira de um açude, Allana vive com a família totalmente imersa na natureza, às vezes imersa até demais. Mas o cenário surreal e estonteante consegue diminuir qualquer que seja os contras de se viver por ali. Nas margens das águas que banham as casas vizinhas, os animais costumam brincar e também virar predadores quando alguns visitantes aparecem.

“O dia a dia na causa animal é difícil. Muitas vezes passamos do nosso limite, a gente vive constantemente no limite de tudo. Financeiro, tempo, desgaste - físico e emocional - e com o Alu isso se agravou ainda mais. Busco, diariamente, ter um pouquinho mais desse equilíbrio, não passar do meu limite e respeitar esse momento da maternidade, mas seguir na causa da forma que dá”.

Em 2016 eu era uma admiradora do trabalho de Allana, com o passar dos anos constatei que aquilo era somente um grão diante das coisas que ela realmente significa e do que é capaz de fazer, digo fazer porque o que ela sonha se transforma sempre em realidade, mesmo que demore, tudo se materializa. Grandiosa e radical, a geminiana é a própria força da natureza. A terra, que também é Allana, renascida em Gaia.

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