
E segue o bicho...
Os resgates e as vidas salvas são apenas uma parcela pequena do que de fato compreende a imensidão da causa animal. Os canis clandestinos e a realidade insalubre que explora até o último pelo do corpo dos animais, também marca a rotina de quem cuida, logo no primeiro contato, dos peludos.
Vicente Lira, 26 anos, é veterinário e um amante dos animais. Muitos pensam que para trabalhar na profissão é necessário apenas gostar de bichos. Na verdade, a parte mais difícil é conseguir tratá-los sem envolver o lado emocional, que pode dificultar o dia a dia no ofício.
“Já atendi vários casos de animais que vieram de canis clandestinos. Esses lugares não têm controle algum, são insalubres e acabam adoecendo os bichos que vivem ali. Quase sempre eles precisam ser submetidos a tratamentos longos e complexos, e a maioria não resiste”, diz.
A falta de higiene, assistência médica veterinária e a privação de um ambiente saudável para viver, também são caracterizados como maus-tratos.
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no Brasil, existem aproximadamente 29 milhões de lares com cães e 11 milhões deles com gatos. Mas esse outro lado da moeda, nem todos os animais chegam a conhecer.
“A maioria dos animais resgatados pelas ONGs vive na miséria, não apenas relacionada a fome e lar, mas também miséria de afeto e carinho”.
Vicente Lira, médico veterinário
Fronteira invisível
Ler e ouvir falar sobre os animais de forma digna ainda é um cenário que parece bem distante. Para quem se dedica a pesquisar sobre eles na academia, a dificuldade alcança uma esfera ainda maior. Nessa missão, a pesquisadora Eveline Baptistella sabe como ninguém o preço de se dispor a contar o sofrimento dos bichos. Reconhecida como um dos maiores nomes no estudo sobre animais e fronteiras, no Brasil e no mundo, Eveline é uma das raras pessoas que entende o valor e a importância das outras espécies. “Você me desculpe se eu me emocionar, é que eu estou vendo a foto dela aqui na outra tela”.
O motivo das lágrimas da pesquisadora era uma cachorra da raça Boxer, que atendia por Maggie. “Ela viveu 14 anos. A vida dela não valia nada, ela ia ser morta e viveu 14 anos de uma vida significativa. Foi aí que eu pensei que deveria fazer mais do que estava fazendo no momento”. A cachorra foi ‘dada’ a ela porque já não tinha mais condições de procriar e estava em um estágio avançado de doença do carrapato.

O pontapé para a transformação na vida de Eveline morreu em 2020. A cachorra partiu mas deixou um legado gigante, que ajudou a pesquisadora a mobilizar trabalhos pelo mundo todo. A jornalista, nascida em Petrópolis, começou a pesquisar sobre o convívio entre espécies em 2012, e desde então nunca mais parou.
Em 2019, a autora lançou a obra ‘Animais e fronteiras: um estudo sobre as relações entre animais humanos e não-humanos’, que levanta a reflexão sobre o papel dos animais no convívio em sociedade. No período do mestrado, ela encontrou dificuldades em falar sobre o assunto, porque diferente dela, as outras pessoas não enxergavam a necessidade de debater o tema.
“Meu orientador da época, uma semana antes de entregar o projeto para concorrer ao mestrado, perguntou: ‘Você ama animais?’, respondi que sim. ‘Mas ninguém vai aceitar um projeto desse’, ele disse, ainda mais eu sendo jornalista, as pessoas acham que animais precisam ficar restritos à ecologia. ‘Faz o teu projeto, talvez você não passe... não, você não vai passar, mas vamos procurar um programa, até algum te aceitar’”.
A profundidade da esfera animal não pode ser compreendida porque ultrapassa as fronteiras da razão humana. De protetora a ativista e pesquisadora, Eveline passou - e viveu - cada etapa que pôde, para ajudar os animais. “Tenho sempre comigo uma frase: ‘eu não me lembro de todos os animais que resgatei, mas lembro de todos que eu não resgatei’. A ideia da proteção animal é muito importante, mas precisa ser bem mais visibilizada do que é (...) É lindo inaugurar um hospital público veterinário, é lindo tirar foto com animal no colo, mas e depois?”.
“Estamos em uma sociedade em que o animal, para sobreviver, precisa ter valor de uso (...) o animal não cabe na zoonose, não cabe na secretaria de bem-estar animal, porque ele está em tudo!".
Eveline Baptistella, pesquisadora
As transformações na sociedade são movidas por pessoas dispostas a enfrentar as consequências que aquela mudança pode causar, mas principalmente, pelas pessoas que se ligam aos afetos de forma genuína, sem interesse, apenas pelo objetivo de ajudar.
