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Dizem que um animal ferido é capaz de perdoar muitas vezes. O que nunca contam nas histórias é que perdoar não é sinônimo de esquecer. Mesmo depois de adotados, vários animais ficam com marcas dos tempos da rua para o resto da vida. Depois que Belhinha partiu, relutei muito em abrir meu coração novamente para outro animal, mas sempre pensei que a minha dor não poderia ser maior do que a dor de nunca ter conhecido o amor de verdade.

Na ONG acompanhei vários casos de animais devolvidos após muito tempo convivendo com as famílias que os adotaram. O sentimento é de que algo corrói a gente, pouco a pouco, cada vez que um bichinho é descartado como objeto, sem vida. Todo filhote é adorável, e por mais agitado e bagunceiro que seja, toda traquinagem é perdoada após uma lambida, mesmo que o alvo tenha sido o seu sapato favorito. Nada é mais importante que o seu pequeno amor… pelo menos até ele crescer.

Datas comemorativas como aniversários, pedidos de namoro e até festas infantis, colecionam momentos de filhotes sendo ofertados como “presentes”. No impulso de proporcionar pequenos sorrisos, nascem grandes abandonos e feridas profundas. Quando bebês, os animais são os favoritos de todo mundo, por serem pequenos e fofos, conquistam rapidamente e é quase impossível não se apaixonar de pronto. Por conta disso, muitas pessoas adotam - e há também os que compram - animais por impulso.

Em novembro de 2019, Amora finalmente encontrou um lar, após ser adotada, ainda filhote, em uma feirinha da ONG Anjos Protetores. A cachorra já havia sido reabilitada e cuidada pelos voluntários, até que estivesse saudável para ir à adoção, o que eles não sabiam é que aquele era apenas o início da história da pequena. Em abril do ano seguinte, Amora foi devolvida, pois a família iria viajar e passar um mês inteiro fora de férias, e por esse motivo, queriam se desfazer dela.

Sem pensar duas vezes, os voluntários foram buscá-la de volta, tristes com a devolução e principalmente com o motivo. Ao encontrarem a cachorra, magra e debilitada, perceberam que a situação era um pouco mais complicada, já que não era apenas um caso de devolução, mas de maus-tratos. A cachorrinha agora tinha o olhar profundo e triste, bem diferente do filhote que costumava ser no início.

O caso gerou muita comoção nas redes sociais pelo estado em que ela foi devolvida. Quando a vi na foto na mesma hora lembrei de Belhinha, e como eram parecidas… me comovi com os olhos tristes dela e decidi conversar com a minha família. Com a morte de Belhinha, Tuti havia ficado muito sozinha e triste, talvez fosse hora de uma nova companheira, não para substituir, claro, mas para dividir os dias a partir dali. Todos concordaram, mas a adoção envolvia uma logística um tanto quanto complicada. Decidimos que a mais nova integrante da casa se chamaria ‘Eva’.

Como a pequenina estava muito debilitada e com problemas seríssimos de pele, deveria ficar separada da mais velha, Tuti, até que estivesse saudável e não pudesse contaminar a irmã. Sendo assim, separei um longo fio que seria preso à corrente fixa na coleira de Eva, para que ela não ficasse solta no quintal sem supervisão, afinal qualquer contato com a terra, no estágio em que ela estava, poderia comprometer ainda mais o tratamento.

 

Os traumas ainda eram presentes para ela, qualquer passo fora do normal poderia ser um motivo para gritos de desespero e um choro que não cessava. Sempre que minha mãe tirava o carro da garagem, Eva caía em desespero. Ela corria em círculos, aos gritos, com o estresse atingindo escalas estratosféricas. Adotei a missão de fazer-lhe companhia, tarefa executada religiosamente de três a quatro vezes por dia, todas as vezes em que o carro dava a partida. No dia em que ela entrou por aquele portão prometi, a nós duas, que ela não ficaria sozinha nunca mais.

Me leva junto?

As irmãs viveram meses separadas por um corredor. Foram noites sem dormir, para Eva e para mim. Toda vez que a cachorra ameaçava latir, eu corria para vê-la e jogar o Reginaldo - um frango de borracha amarelo, pelo qual a peludinha nutre imenso apreço - para que ela brincasse e esquecesse a solidão. O isolamento sempre foi parte da vida dela, mas agora era diferente. Como não desejar mais do que nos faz bem?

O estresse de estar sempre no mesmo lugar, sem grandes mudanças, começou a causar muita ansiedade em Eva. Ela destruiu a própria caminha - todos os dias tirava uma parte do enchimento, para que ninguém notasse a diferença -, assim como a embalagem do shampoo, esquecida em um dos banhos, também virou diversão na boca dela.

Após muitos vidros de loção preciosa - não só no preço, mas no conteúdo - Eva finalmente estava saudável. E o dia em que ela finalmente pode ficar com a irmã foi inesquecível. Tuti não gostou tanto, já que a mais nova queria brincar o tempo inteiro com ela, que detestou a ideia da correria, mas aos poucos foi aceitando o momento.

Muitos brinquedos, roupas e sapatos foram perdidos no processo, mas o crescimento de Eva seguia em ritmo frenético, assim como ela. A energia da filhote começou a refletir em um comportamento de brincadeiras mais intensas, que acabavam em mordidas, não de raiva, mas na intenção de nos prender em mais brincadeiras. Juntei minhas economias e decidi investir em um intensivo de adestramento com um profissional da cidade. Prometi para a família - com quem já acumulava dívidas que variavam de pijamas até canos arrancados - que Eva seria uma nova criatura depois das aulas. E foi… bom, não exatamente como eu esperava, mas foi.

Muito inteligente e esperta, a cachorrinha magrela antecipava os movimentos do adestrador e aprendeu dois comandos logo no primeiro dia. “Ela é muito inteligente, viu? É ‘maneirinha’ também. Quando tiver competição tenta inscrever ela, a bichinha vai dar um baile em muito cachorro treinado há anos”. Mas a sagacidade da menina era mesmo para a danação. Assim que o adestrador passava pelo portão ela voltava a ser o mesmo furacão de sempre, arrastando tudo que via pela frente. Mesmo assim, como uma aluna aplicada, recebeu o certificado de conclusão da escolinha de adestramento. Aprovada com louvor!

Depositamos nossa esperança, mais uma vez, em outra alternativa que poderia amenizar o comportamento extremamente ativo da cachorra: a castração. Ela se acalmou bastante… durante o efeito da sedação apenas, assim que retornou, o fenômeno da natureza voltou mais forte que nunca.

Os domingos de passeio na praça são os mais divertidos para ela, as idas ao veterinário também, mesmo causando uma confusão gigante na recepção com os outros animais. Eva é um acontecimento. Na clínica, é conhecida por seu comportamento atípico e também por assustar os cachorros maiores, que morrem de medo de seu latido frenético. Mas com os humanos é muito sociável e permite o carinho de todo mundo.

Apaixonada pela dona da casa, a menina gosta mesmo é da atenção de minha mãe e tira a mulher do sério puxando as roupas do varal. Depois que ela pega, pode dizer ‘adeus’ à sua peça favorita. Mamãe ama fingir que não, mas adora as loucuras da maluquinha, até quando ela derruba a bacia das vestimentas recém-lavadas do tanque, a melhor brincadeira dela é testar os nossos limites. Não gosto de pensar que animais como ela são devolvidos a todo momento, porque mesmo com a correria e os desdobros em sua criação, nunca conseguiria deixá-la para trás.

De olhar puro, Eva consegue cativar rapidamente, mesmo forçando contato e com 0 noção de espaço pessoal. Ainda que com dificuldades para confiar, muito medo e insegurança, a cachorrinha se entregou ao amor de uma nova família e eu jurei que ela nunca mais conheceria a maldade.

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