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Desde que me lembro, minha vida é estar nessas andanças por aí. Entrando e saindo de lugares, comendo poucas coisas do que sobra da ‘gente grande’ e às vezes até aproveitando banquetes fartos. Um dia, por acidente e guiada pela fome, fui parar em um lugar gigantesco, cheio de árvores e coisas que eu não sei dizer exatamente o que são, mas me proporcionaram cochilos muito bons. Latas grandes coloridas chegam a todo momento, gente que não acaba mais. Correria, barulho e desprezo. Nem sempre encontrar alguém é um bom sinal…

Apesar das dificuldades sempre me considerei feliz ou pelo menos satisfeita, claro que os dias de comida e carinho para mim são os melhores, mesmo que raros, mas no geral um dia podendo andar sem ninguém gritando: “Sai, cachorro!” é um dia muito bom. Se você chegou até aqui é porque acha que essa vai ser uma história e tanto, bom, talvez nem seja, mas é a minha história… pelo menos uma parte dela.

Durante minha pequena aventura na ‘floresta do homem grande’ conheci muitos moradores de lá, mas nem todos gostavam das minhas aparições surpresas, é que apesar de pequena, sempre gostei bastante do contato com eles, das carícias na barriga e da fala engraçada e isso me empolgava bastante, minhas especialidades sempre foram os saltos e lambidas, aí já viu, né?! Eles não entendem o que eu digo, mas eu posso sentir o que eles falam.

*Ei, bonitinha! Vem aqui com a tia!*

“Será que é comigo?” pensei, mas sem questionar muito, corri depressa em direção ao homem grande. O homem grande na verdade era uma fêmea, para mim é difícil saber quem é quem, porque no mundo animal nossa saudação é bem diferente. Como eles conseguem se identificar sem cheirar os traseiros uns dos outros? Não consigo entender e é difícil reconhecer, mas ela… ah! Ela eu poderia reconhecer a quilômetros de distância. A partir daquele encontro minha vida seria diferente.

Me leva junto?

*Solta esse bicho, ele vai te morder!*, disse um homem que passava.

Não sei o que ele disse, mas acho que não era coisa boa não. Fingi não ligar e continuei aproveitando o carinho da fêmea gentil, ela me ofereceu um pouco de comida e água e eu tratei de comer o mais rápido possível, porque não é todo dia que minha barriguinha vê sinal de alimento.

Dias depois eu comecei a me sentir estranha, já não tinha tanta energia e só queria ficar esparramada pelo chão, mas achei que era só preguiça mesmo. Até que tudo começou a piorar… Quase sem forças, tentei ficar em um espacinho onde as pessoas pudessem me ver e me ajudar, só queria que a dor parasse. Mas todos pareciam fingir que eu não existia e essa sensação já me era familiar. Até que ela chegou.

Cada vez mais fraca, minha vontade era só de deitar no colo dela e ficar ali, mas meu pescoço doía e minha barriguinha revirava. Muitas pessoas passavam perto da gente e como a moça grande estava comigo, eles me enxergavam, alguns até perguntavam o que tinha acontecido, mas ninguém queria ajudar, para o desespero da humana e meu também.

Ela sumiu por um tempo e eu achei que tinha sido abandonada mais uma vez, até que ela voltou. Começou a limpar uma gosminha que ficava caindo do meu pescoço. Quanto mais ela tirava, mais líquido saía.

*Bebê!! O que tu tens… MEU DEUS!!!! O QUE ACONTECEU?*

*Vai ficar tudo bem, tá? Eu vou chamar ajuda e vai ficar tudo bem*

Ela me colocou deitada em seu colo e apertava com força uma toalhinha no meu pescoço para tentar segurar o que já parecia ter mudado de cor. O que antes era uma gosma verde, virou um líquido vermelho. Ao mesmo tempo em que conversava comigo para eu não fechar os olhinhos, ela gritava com uma coisa quadrada no ouvido. Os olhos dela pareciam não conseguir conter o líquido também.

*Fica deitada aqui, já estão vindo te buscar e eu vou ficar aqui contigo. Essa barriga… não… tu estás grávida também! Meu Deus!*

Ai, o carinho na minha barriguinha era tão bom, mas tão intenso quanto a dor. Os homens grandes continuavam passando, indo, vindo, olhavam com curiosidade, mas com a gente que é da rua ninguém se importa não.

*Ei, moça! Por que você tá chorando? O que aconteceu com o cachorro, tá tudo bem? Ele é seu?*

Finalmente alguém para ajudar! Eles conversaram com a moça grande, tentaram acalmar, mas eu só ficava cada vez pior. Respirar já era difícil, meu corpo não aguentava mais um segundo, olhei para ela e respirei fundo mais uma vez, até que os olhos dela se encheram d’água de novo e ela sorriu para mim.

*Chegaram!! Aqui, a gente tá aqui*

Fui carregada tão depressa que mal tive tempo de me despedir da humana. Passei um tempinho com os ‘humanos de branco’, levei umas furadinhas e aos poucos fui melhorando. Falaram que eu tinha bebês na barriga, mas que eles não iam resistir ao meu tratamento e de fato não resistiram. Eu tentei.

*Ela foi picada por um animal peçonhento, aparentemente não foi hoje. Essa cachorra aguentou bastante!*

Acho que nem todos os cachorros vão ter a mesma sorte que eu ou cruzar com humanos bons, a rua não tem piedade da gente. Ali eu já não era mais um animal qualquer, a partir daquele instante eu me chamava “Cobra”.

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